Brasil: a “Divina Comédia” do Hemisfério Sul

sexta-feira, 21 de maio de 2010 0 comentários







O Brasil é retratado ao longo de seus mais de quinhentos anos de existência como um local que desperta sentimentos diversos: amor, ódio, indiferença, esperança, crença, descrença...sentimentos tão distintos ajudaram a construir a imagem de um país marcado por acentuadas diferenças, verdadeiras oposições que coexistem e contrapõe-se, paradoxalmente completando-se. A imagem de um Brasil paradisíaco, verdadeiro local arquitetado por Deus e constituído pela esperança de um local que poderia dar certo caminha ao lado da imagem de um Brasil infernal, dantesco, local de sofrimento em que jamais ninguém gostaria de estar.

Tal dicotomia já pode ser percebida no primeiro documento descritivo a respeito dessas bandas: a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel . Caminha é bastante claro em sua carta ao exaltar a exuberância natural dessas terras, ao retratar um verdadeiro paraíso isolado e desconhecido pelos homens. Caminha recomenda ao Rei que explorasse essas terras, reconhecendo o potencial produtivo da terra recém-descoberta e já enxergando nela um futuro próspero e importante para Portugal. Além do mais, Caminha vê na população indígena nativa uma grande passividade e boa receptividade, o que poderia facilitar a dominação portuguesa nessas novas terras. Uma possível facilidade na expansão da fé católica também é lembrada por Caminha, que aí já demonstra um lado mais crítico com relação aos nativos e à terra descoberta. Para o autor da carta, os nativos pareciam não possuir nenhum tipo de crença em Deus ou religião, o que demonstraria o quão primitivo era essa sociedade recém achada. Daí já se pode tirar uma imagem de uma terra dantesca, atrasada, que necessitava de salvação, e que por isso carecia da intervenção portuguesa e da fé católica. Não por acaso esse seria um dos principais argumentos utilizados pela Coroa portuguesa para legitimar seu domínio no Brasil. Em suma, Caminha descreve uma terra maravilhosa, que poderia ser bem útil à Portugal, e uma terra totalmente obscura, infernal, que precisava e necessitava da intervenção portuguesa para sair das trevas.

O “Brasil Inferno” e o “Brasil Paraíso” está presente com mais força ainda na literatura do século XVII. Os “Sermões” de Padre Antônio Vieira retratam essas duas imagens. O Brasil infernal se dá nas passagens de Vieira através das barbáries aqui existentes, nos massacres indígenas, na falta de estrutura para se viver, nos mandos e desmandos aqui ocorridos, uma verdadeira terra de ninguém. O embate colonos X negros X indígenas também retrata bem o estado de conflito existente na colônia, onde a desordem e os desmandos muitas vezes se constituíam como rotineiros. Padre Vieira pregava através de parábolas e analogias, e usualmente comparava a situação da colônia com alguma passagem bíblica, para fazer o público entender melhor sua mensagem. Uma verdadeira mistura entre a realidade e o sagrado, as coisas que vêm de Deus e a realidade cruel e profana na terra. Nesse ponto, as pregações de Vieira também ajudam a formar as imagens de um Brasil paraíso e de um Brasil de perdição, uma vez que o Padre utilizava analogias e parábolas bíblicas para explicar e falar sobre a situação política e econômica da Colônia, misturando o sagrado e o profano, o bem e o mau, o bom e o ruim.

Ainda no século XVII, podemos retirar da obra de Antonil essas mesmas imagens, na medida em que ele, ao discorrer sobre a situação econômica da Colônia, mostra o avanço e a riqueza dessas terras, e também a precariedade, a falta de estrutura dessas terras e de despreparo dos colonos. Antonil propõe-se a fazer um estudo econômico detalhado para servir à Coroa portuguesa, mas acaba por retratar uma terra que ao mesmo tempo é próspera e miserável, é avançada e atrasada, é o paraíso e o inferno. Antonil exalta a capacidade produtora dos Engenhos, a riqueza da produção de tabaco, o número impressionante de cabeças de gado aqui existentes. O Brasil em pouco tempo se constituira como uma economia forte e bastante lucrativa para Portugal. Mas, ao mesmo tempo em que mostrava vigor econômico e capacidade impressionante de produção, a Colônia se mostrava um lugar ermo, cheio de conflitos e contradições, marcado pela atuação de pessoas que atuavam de forma equilibrada ou cruel, justa ou injusta, verdadeira ou hipócrita. Não por acaso, Antonil cita em sua obra um provérbio recorrente da época: “O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas”. Fica claro que à época já havia uma imagem construída a respeito do Brasil, uma imagem de uma terra que seria o paraíso para alguns, e o inferno para outros. A falta de estrutura dessas terras retratada por Antonil também nos remete uma imagem de um local arrasado, sem estradas, sem equipamentos, sem gente preparada, sem condições mínimas decentes para se viver, um local separado da metrópole não apenas por um oceano, mas por um abismo temporal sem fim.

Como pode-se ver nesses três autores dos séculos XVI e XVII, havia uma imagem dual de um Brasil que é ao mesmo tempo salvação e perdição, prosperidade e pobreza, local de alegria e sofrimento, paraíso e inferno. Essas imagens de certa forma permaneceram até os dias de hoje, principalmente no exterior. Não é raro encontrar revistas e noticiários de outros países, principalmente os europeus, exaltando o caráter paradisíaco do maior país sulamericano. Como já exposto nesse ensaio, a Carta de Caminha foi a gênese dessa imagem brasileira de uma terra exuberante, excepcionalmente linda, cheia de riquezas naturais e cenários divinos. E tal imagem ainda persiste no exterior, a imagem de um local exótico e místico, que atrai milhões de turistas todos os anos. A alegria do povo brasileiro, receptividade, também oriunda da Carta de Caminha, permanece. Somos o país da alegria, do carnaval, do futebol. Mas, como a imagem de um país paradisíaco permaneceu, a imagem de um país infernal também. Somos o país da corrupção, da violência urbana, marcado pela desigualdade social, pelos mandos e desmandos. Ao mesmo tempo em que somos um país emergente que poderá se tornar potência daqui algumas décadas, somos um país arcaico, que também carece de ajuda e de desenvolvimento. O filme “Turistas”, do ano de 2006, retrata bem essa imagem dual que o Brasil ainda tem lá fora: o filme mostra as férias de norte-americanos que querem muita diversão num paraíso natural. Após uma noitada de muita festa, regada a mulatas e muita caipirinha, eles acordam numa praia qualquer sem documentos e sem dinheiro. O "paraíso" se torna um inferno quando eles percebem que caíram no temido golpe do "Boa Noite, Cinderela" ,e lutam para conseguir voltar para casa.

O Brasil, desde os primórdios de sua existência, passou a ter a imagem de um local que ao mesmo tempo é o inferno, o purgatório, e o paraíso. Desde que os portugueses aqui chegaram em suas “barcas de Caronte”, a representação das novas terras ligadas a essas imagens são recorrentes e tais imagens permanecem até hoje. Assim como os personagens da obra Divina Comédia, de Alighieri, são obrigados a passar do Inferno para o Purgatório, e do Purgatório para o Paraíso, os portugueses, índios, escravos e mulatos são obrigados a conviverem nesse local em que as três representações se fazem presente em um mesmo lugar. Se Dante Alighieri fosse vivo na época do Descobrimento do Brasil, e pudesse notar a semelhança de sua obra com o que aqui se fez e se formou, certamente acusaria os portugueses de plágio. Mas a obra dos portugueses está longe de terminar no Paraíso, como a do poeta italiano.

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